sábado, 18 de agosto de 2012

A memória é de quem e para quê?


Como esperado, a II Mostra do Samba de Roda do Recôncavo Baiano movimentou muito mais do que as mãos e os pés dos sambadores e sambadeiras baianos. Realizada pela ASSEBA, entre os dias 16 e 19 de agosto de 2012, durante a Mostra foram realizadas oficinas, seminários e quatro noites de shows com apresentação de 12 grupos de samba de roda, o coco da Paraíba, o Carimbó do Pará e o Jongo do Sudeste.

Esses grupos foram reconhecidos (Samba e Jongo) e estão em processo de reconhecimento (Carimbó e Coco) como patrimônio imaterial brasileiro e da humanidade. Com isso, organizam-se de forma crescente para concretizar os seus planos ou projetos de salvaguarda.


Não é por menos que abriram as discussões em Santo Amaro, no dia 17 de agosto, no auditório da Casa do Samba/Solar Subaé, com a mesa: Patrimônio imaterial – o que? Com a moderação de Rosildo Rosário, coordenador do Pontão do Samba (ASSEBA), a mesa foi formada por Mestre Rogério (RJ), Isaac Loureiro (PA), Alessandra Gama (SP), Mestre Macaco (BA) e Mônica Sacramento, da Universidade Federal Fluminense e Pontão do Jongo.

As abordagens são variadas e marcadas pela vivência de cada um. Isaac Loureiro, Coordenador da Campanha ‘Carimbó Patrimônio’ e membro do  Colegiado Nacional das Culturas Populares exaltou a necessidade e o desejo de ser visto e ouvido, de ser considerado como parte fundamental desse país.

Para ele, patrimônio é a herança dos pais. É a vida das pessoas. Sentimentos, história, memória, sangue e carne. “Nós somos fruto de um processo histórico doloroso. Num país construído com base na destruição das identidades”.

Problematizou a situação de isolamento em que muitas vezes essas comunidades se encontram. “Nós somos o Brasil off-line. Somos os invisíveis, que não estão no mercado. O isolamento é conveniente para os que estão no poder. Para a gente não. Precisamos nos ver, nos comunicar”, disse.

O Mestre Macaco, da tradição da capoeira em Santo Amaro,  é coordenador de um ponto de cultura na cidade. Lembrou que apesar de tudo, segurar a bandeira das manifestações culturais, das heranças culturais já foi mais difícil do que é hoje.


Defendeu a presença de mestres de notório saber dentro das universidades mostrando seus saberes. E comemorou a capacidade conquistada pelos grupos da cultura popular de estarem reunidos. “Hoje criamos a oportunidade de falar do que a gente pensa, de expressar um pouco das coisas pelas quais lutamos”, falou o Mestre.

Alessandra Gama, do Ponto de Cultura Ibaô, participou da construção do plano de salvaguarda da capoeira. Ela se lembrou dos desafios de lidar com a legislação, com as institucionalidades. É um processo bastante complexo. E a convocação partiu do Ministério da Cultura e tudo isso está sendo apropriado pelos capoeiristas. Registro como patrimônio. Mais do que preservar e do que entender é se apropriar. E essa apropriação não se resume ao saber. É conseguir lidar  com todas as questões, práticas, novas rotinas, novos modos de se relacionar e se resguardar institucionalmente. Hoje, as nossas tradições que eram feitas nos fundos de quintal, de forma muito particular, mas que são do coletivo, estão lidando com aparatos legais, com institucionalidades.

Trouxe para a Roda o autor Mário Chagas que discute memória e poder. “Quem detém o poder da memória e do esquecimento? Lidamos durante anos com a memória do poder que determinou o espaço social que deveríamos ocupar. Tem diversas formas de lidar a memória: guardando ela como um passado congelado ou fazendo uma relação do passado-presente. Deixamos de ser sujeitos passivos para ser o sujeito que vai agir e não vai mais contemplar essa memória como algo morto e perdido.

Seguro a sua mão na minha para que juntos possamos fazer o que eu não posso fazer sozinha

Mônica Sacramento, professora da Universidade Federal Fluminense, Não sou uma jongueira de tradição mas por adoção. Sou parceira dessa luta que é histórica. Ela destacou a necessidade urgente de se pensar nos direitos e de discutir, profundamente, sustentabilidade. Além disso, a necessidade de construção de redes.

Seguem alguns trechos transcritos da fala de Mônica:

“Nós brasileiros fomos educados a esquecer determinadas práticas culturais, modos de fazer, maneiras de se relacionar. Quando estamos falando de memória, temos que entender que na construção de uma nação, diversos processos definem o que é pra ser lembrado”.

“Passamos por etapas de dominação. Agora está na moda a sustentabilidade dos grupos de cultura popular. Sustentabilidade não é montar um grupo de artesanato. Esses grupos são sustentáveis há muito mais de 200 anos”.

“De que maneira a narrativa da formação do Brasil define o que é nosso patrimônio. Que narrativa nacional queremos? Já tivemos a do exótico, do folclórico. Agora, os próprios detentores dessa memória estão marcando seus espaços e reivindicando seu lugar de fala, seu lugar de construção ativa dessa narrativa de nação”.

“Alguns pactos precisam ficar definidos: ninguém faz nada para ninguém. Fazemos juntos, no coletivo. Como construir um projeto coletivo, baseado na diferença, para montar um plano de trabalho e desenvolver ações de salvaguarda? Coletivamente e cooperativamente? Como fazer com quê a voz da Universidade não seja preponderante? De forma combinada e complementar vamos construindo processos que vão interferir na construção de uma nova narrativa para o Brasil. Com senso de comunidade, da roda”.

“Como a universidade vai preparar os jovens para assumir lideranças e cargos de direção institucional. Precisamos de sambadores e sambadeiras, jongueiros na universidade, se preparando para assumir lugares de poder”.

Chegou o pessoal do Carimbó, de Fortalezinha do Pará com o Mestre Pedro. Eles passaram 26 horas em trânsito até chegar na Casa do Samba. Naturalmente o Mestre foi convidado a falar. Falou. Mas foi além. Generoso, convidou o grupo, cantaram e dançaram. É assim que fazem. Amanhã tem mais do Carimbó.

Texto: Scheilla Gumes (DRT/BA 2204)
Fotos: Natália Reis e Amana Dultra - LabFoto/FACOM

Um comentário:

  1. Momentos grandiosos, de muita importância para nossas práticas e para nossas reflexões. Vemos a cada dia ser possível conectar experiências para fortalecer a cultura que agrega, que soma esforços e protagoniza ações políticas participativas. Sou muito grata por ter vivenciado cada dia dessa mostra, que foi para além dos palcos...

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